O Mistério da Cruz encerra em si mesmo uma fonte de Sabedoria que nos capacita para saborearmos os mistérios de Deus, de Cristo e do Homem.
O evangelho de São Lucas diz que Jesus, no momento de morrer sobre a cruz, garantiu ao Bom Ladrão que nesse momento ia abrir as portas do Paraíso fechadas à Humanidade pelo pecado de Adão (Lc 23, 43).
Esta afirmação tem uma força simbólica enorme, pois é a garantia de que Jesus, no momento de morrer a cruz, restaurou o projecto humano distorcido pelo pecado de Adão.
O Livro do Génesis diz que após o pecado do Homem primordial, Deus fechou as portas do Paraíso, impedindo o acesso de Adão e seus filhos à Árvore da Vida.
“O Senhor Deus disse: “Eis que o homem quanto ao conhecimento do bem e do mal se tornou como um de nós.
Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da Árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre” (Gn 3, 22). Inserida neste contexto, a cruz ganha uma força simbólica de vitória sobre o pecado e a morte.
Ao morrer e ressuscitar sobre a cruz, Jesus proporciona-nos o acesso à Vida Eterna da qual Adão nos tinha privado.
Esta afirmação é reforçada por uma série afirmações que exprimem a transformação radical operada sobre a cruz pela morte e ressurreição de Jesus:
O véu do templo rasgou-se de alto a baixo (Mt 27, 51). Com este pormenor, os evangelistas querem afirmar que a morte e a ressurreição de Jesus Cristo proporcionaram o acesso directo das pessoas a Deus.
Com efeito, graças ao facto de os seres humanos estarem unidos de modo orgânico a Cristo, são assumidos e incorporados na comunhão familiar de Deus.
O véu do templo era um cortinado que separava o Santo dos Santos, isto é, o lugar santificado pela presença de Deus e o lugar onde permaneciam os crentes.
O Santo dos Santos era o lugar sagrado por excelência. Só o sumo-sacerdote podia aí entrar para comunicar com Deus e obter as bênçãos de Deus.
O véu do templo vedava a entrada das pessoas no Santo dos Santos. O rasgão do véu do templo é mais um sinal para da difusão do Espírito Santo que incorpora as pessoas humanas na Família de Deus.
Esta incorporação significa interacção directa entre Deus e o Homem através do Espírito Santo. É a dinâmica da Encarnação a universalizar-se, provocando um salto de qualidade a nível da Humanidade.
São Paulo entendeu muito a importância da difusão do Espírito Santo pela Humanidade. Eis o que ele diz na Carta aos Romanos:
“Todos os que são movidos pelo Espírito Santo são filhos de Deus” (Rm 8, 14).
E noutra passagem desta mesma Carta afirma que o Espírito Santo é o amor de Deus derramado nos nossos corações (Rm 5, 5).
O rasgão do véu do templo afirma que os cultos inúteis do Antigo Testamento acabaram e teve início o Novo Culto em Espírito e verdade, como Jesus disse à Samaritana:
“Mulher acredita em mim: chegou a hora em que nem no templo dos samaritanos (Garizim), nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai.
Vós adorais o que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos, pois salvação vem dos judeus. Mas vai chegar a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores, hão-de adorar o Pai em Espírito e Verdade, pois são estes os adoradores que o Pai pretende” (Jo 4, 21-23).
Os relatos do véu do templo rasgado são uma maneira simbólica de confirmar o que diz o evangelho de São João:
“Jesus respondeu a Tomé: “Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir até ao Pai a não ser por mim” (Jo 14, 6).
Na verdade, é por Jesus Cristo que nós fazemos parte da Família de Deus, como diz São Paulo. Somos filhos de Deus Pai e irmãos em relação ao Filho de Deus (Rm 8, 14-17).
II-A CRUZ E A RESSURREIÇÃO DE CRISTO
A cruz simboliza o ponto de emergência da Nova Humanidade. Na verdade, Cristo não ressuscitou a partir do túmulo mas sim a partir da cruz.
São Paulo diz que este acontecimento representa a plenitude dos tempos, isto é, o fim da gestação do Homem do Homem Novo e o início do parto através do qual estão a nascer os filhos de Deus:
“Mas quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho que nasceu de uma mulher sujeita à Lei de Moisés, para resgatar todos os que se encontravam sob o domínio dessa Lei e serem adoptados como filhos de Deus.
E porque somos filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho que clama “Abba”, Pai querido.
Deste modo já não somos escravos, mas filhos. Se somos filhos somos também herdeiros pela graça de Deus” (Gal 4, 4-7).
O evangelho de São Mateus diz que no momento morre e ressuscita na cruz, os túmulos começam a abrir-se e os justos começam a ressuscitar com Cristo (Mt 27, 52).
Na verdade, se Cristo é o Novo Adão, isto é, a Nova Cabeça da Humanidade, não tinha sentido ressuscitar a cabeça sem o corpo.
De facto, diz a Primeira Carta aos Coríntios, nós somos corpo de Cristo e seus membros, cada qual com sua função (1 Cor 12, 27).
Na verdade, foi a partir da cruz que aconteceu a difusão salvadora do Espírito Santo. No momento em que o soldado introduziu a lança no coração de Jesus crucificado, saiu sangue e Água, diz o evangelho de São João (Jo 19, 34).
A água é a Água Viva como Jesus tinha ensinado aos Apóstolos, a qual faz emergir uma fonte de Vida Eterna no coração das pessoas (Jo 7, 37-38).
O evangelho de São João diz que a Água Viva, é o Espírito Santo, a força ressuscitadora de Jesus que também nos vai ressuscitando com ele.
As pessoas que beberem desta Água, disse Jesus à Samaritana, nunca mais terão sede (Jo 4, 14).
Do mesmo modo, o sangue que brotou do lado de Jesus, é o sangue da Nova e Eterna Aliança, isto é, o Espírito Santo que é o sangue de Cristo ressuscitado e que leva a vida divina a todos os membros do Corpo de Cristo.
Os que são vivificados por este sangue recebem a Vida Eterna e ressuscitam com Jesus Cristo (Jo 6, 54-55).
Dizendo que no momento da morte e ressurreição de Jesus o véu do templo se rasgou de alto a baixo, os evangelhos querem simbolizar a força renovadora do Espírito Santo que irradia da cruz, rompendo com as fronteiras estreitas da fé dos judeus e dos seus cultos ineficazes, como sugere São João.
Quando São João afirma que no momento da morte e ressurreição de Jesus o véu do templo se rasgou de alto a baixo também quer dizer que, nesse momento, Jesus pôs fim às fronteiras estreitas da religião judaica e inaugurou o culto da Nova Aliança no Espírito (Jo 14, 21-23).
O evangelho de São Mateus diz que no momento em que Jesus morre e ressuscita, as primeiras pessoas que reconheceram Jesus como Filho de Deus foi um pequeno grupo de pagãos: o centurião romano e o grupo de soldados que estavam com ele.
Com esta afirmação São Mateus pretende dizer que a difusão do Espírito Santo aconteceu no momento da morte e ressurreição de Jesus na cruz, pois os pagãos só acolhem Cristo como Messias e Filho de Deus graças à acção do Espírito Santo:
“O Centurião e os soldados que com ele guardavam Jesus, vendo o tremor de terra e o que estava a acontecer ficaram apavorados e disseram: “Este era verdadeiramente o Filho de Deus!” (Mt 27, 54).
III-A CRUZ E O PLANO SALVADOR DE DEUS
Cristo não nos fala de um Deus Pai cruel, um Deus incapaz de perdoar sem exigir tormentos e maus tratos.
As pessoas que interpretavam a morte de Jesus como um sacrifício expiatório exigido por Deus Pai estavam de facto a desfigurar o rosto de Deus.
Estas pessoas não se davam conta que Deus é uma Família cujos laços são o amor e a comunhão.
O que Deus Pai sente em relação a nós também o sente o seu Filho Unigénito, bem como o Espírito Santo.
Jesus curava os doentes e perdoava os pecados, afirmando que era esta a vontade de Deus Pai.
Justificava o seu procedimento, dizendo que estava a proceder de Acordo com a missão que o Pai lhe tinha confiado:
“O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (Jo 4, 34).
Noutra passagem ainda mais explícita, afirma: “Eu não desci do Céu para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou.
E a vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas o ressuscite no último dia” (Jo 6, 38-39).
Se é este o modo de Deus Pai nos amar e perdoar, como é que ele podia ter exigido ao seu Filho aquela morte cruel?
Deus não ama o pecado, e a morte de Jesus foi um pecado perpetrado pelos judeus daquele tempo.
São João diz que Deus é amor (1 Jo 4, 7; 16). Isto significa que as pessoas divinas nada podem contra o amor, pois Deus não se pode negar a si mesmo.
Por outras palavras, Deus ama-nos de modo infinito e incondicional. Não esteve à espera que fôssemos bons para gostar de nós.
Pelo contrário, criou o Homem à sua imagem e semelhança e em seguida confiou-lhe o domínio de toda a criação (Gn 1, 26-30).
Falar da justiça de Deus, portanto, não significa falar de um julgamento de tribunal. Se Deus é amor, a sua justiça não pode ser outra senão a justiça do amor e o amor nunca se vinga, diz São Paulo:
“O amor tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará” (1 Cor 13, 7-8).
Se Deus é amor, então temos de reconhecer que as pessoas divinas são assim, quer se trate de Deus Pai, de Deus Filho ou do Deus Espírito Santo.
Esta é a luz que nos vem da Sabedoria da Cruz, a qual nos fala da plena fidelidade de Jesus à missão que Deus lhe confiou.
A morte violenta de Jesus resultou da maldade do judaísmo da sua época, o qual se opôs ao plano de amor e salvação universal de Deus.
Mas a sabedoria que brota da cruz revela-nos a grandeza do amor de Deus e a gratuidade do seu plano salvador em favor de todos os homens.
Ao mesmo tempo, o mistério da cruz revela-nos como a fidelidade de Jesus Cristo foi agradável a Deus, que o ressuscitou e sentou à sua direita.
São Paulo entendeu muito bem a relação que existe entre o amor de Deus Pai por nós e o modo fiel como Jesus exprimiu este mesmo amor. Eis as suas palavras na Segunda Carta aos Coríntios:
“Se alguém está em Cristo é uma Nova Criação. O que era antigo passou. Eis que tudo se fez novo.
Tudo isto vem de Deus que em Jesus Cristo nos reconciliou consigo, não levando mais em conta o pecado dos homens” (2 Cor 5, 17-19).
É por esta razão que São Paulo diz que Jesus Cristo é o único medianeiro entre Deus e o Homem (1 Tim 2, 15).
Eis como a Carta aos Colossenses descreve o projecto salvador que Deus sonhou para nós e realizou em Jesus Cristo:
“Jesus Cristo é a imagem perfeita do Deus invisível, o primogénito de toda a Criação. Foi em harmonia com ele que as coisas do Céu e da Terra foram criadas, tanto as visíveis como as invisíveis. Tanto as coisas do Céu como as da Terra (…).
Tudo foi criado nele e por ele, pois ele é anterior a todas as coisas e todas subsistem por ele. Ele é a cabeça da Igreja e o princípio, o primogénito de entre os mortos, a fim de ter a primazia em todas as coisas.
Aprouve a Deus que habitasse nele toda a plenitude, a fim reconciliar consigo todas as coisas em Cristo e por Cristo” (Col 1, 15-20).
O mistério da cruz é o símbolo máximo do amor de Deus por nós e da fidelidade incondicional de Jesus Cristo.
Calmeiro Matias
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